Alice Vieira começou a trabalhar como jornalista e foi, por acaso, que passou à escrita de livros infantis. A pedido dos filhos, aos 35 anos, escreveu uma história sobre a sua família. O marido acabou por enviar o texto para um concurso do Ano Internacional da Criança no qual saiu vencedor. Estivemos com a autora e ficámos a conhecer um bocadinho da sua vida, das suas aventuras literárias e não só.
Teve uma infância complicada… Foi por isso que tentou levar alegria aos mais novos através da escrita? Para compensar a sua infância?
Não sei se é para compensar. Talvez um pouco para lhes mostrar que que nós podemos contornar essas coisas más. Há uma coisa má que eu tenho que fazer: isto não me vai matar, pois não? Então vamos lá fazer! E é um bocadinho para isso [que eu escrevo], para eles reagirem quando houver coisas más. Porque nós podemos reagir, podemos dar a volta, fazer outras coisas e é sempre o que eu lhes digo. E é por isso também que eu gosto muito de ir a escolas.
De que é que mais gosta nas visitas às escolas?
Gosto muito de ver os miúdos a ler e a perguntarem-me coisas sobre os livros. Na primeira vez que fui a uma escola, a professora demorou-se um bocadinho e eu estava na porta à espera dela. Entra um miúdo, olha para mim e diz:
«- Tu é que és a Alice?Tu é que és a escritora?
– Sou!
– Olha, não pareces nada!»
E foi-se embora. Não sei o que é que eu não parecia… (Risos)
Eu inspiro-me na realidade.
Nos dias de hoje, como é que arranja inspiração para tantas histórias diferentes?
Ora aí está o meu lado de jornalista. Eu invento muito pouco. Quase todas as histórias que eu conto são tudo histórias verdadeiras, histórias que eu ouvi, que eu acompanhei, que me contaram.
Mas é muito engraçado porque, eu enquanto estava a escrever o Chocolate à Chuva estava na parte em que os pais de uma amiga de Mariana se divorciaram. E eu ia mesmo fazer o capítulo a seguir sobre isso. À porta da minha casa, em Lisboa, há um café e quando entrei lá estava um senhor e uma miúda sentados num canto, e eu percebi imediatamente que aquilo era a primeira vez que o pai e a filha se encontravam depois do divórcio. O coitado não atinava uma:
«- Olha, vai ali buscar um pastel de nata que tu gostas tanto. “
– Ó pai, eu não gosto de pastéis de nata.
– Olha por acaso essa fita fica bem com os teus que os teus olhos verdes!
– Ó pai eu tenho olhos castanhos!»
Coitadinha! E eu disse: «já está!» Eu cheguei a casa, inventei pouquíssimo, foi aquela história que eu passei. Só para dizer que eu aproveito tudo o que vejo.
Costuma inspirar-se em livros de outros escritores?
Não. Eu leio muito, evidentemente, mas eu inspiro-me na realidade.
Como eu digo, invento muito pouco. Quando eu publiquei a Rosa, Minha Irmã Rosa, o meu irmão leu aquilo e disse: “nunca mostres isto à nossa tia porque ela nunca mais te fala”. Isto porque a tia Magda era igualzinha à tia com quem eu vivi em miúda. Só o nome é que não era o mesmo, claro. E eu dei o livro à senhora e ela adorou o livro e falou do livro a todas as amigas e nem se reconheceu.
Não?
Não, nada. Eu e o meu irmão só nos ríamos. As pessoas são assim, as pessoas nunca reconhecem aquilo que são.
E depois com esse [livro] também me aconteceu uma coisa engraçada, eu ia falando com a minha filha, dizendo como é que a história ia continuando. Ela estava a par de tudo e eu precisava mesmo de estar sozinha para ver se acabava. Não havia telefone, claro. E eu queria falar com a minha filha para lhe dizer o que é que tinha acontecido e fui ao café e pedi ao senhor para me deixar telefonar.
Então liguei para ela e disse:
«- Olha, é só para te dizer que matei a tia.» (risos).
No café estavam a jogar dominó e, de repente, eu senti assim um silêncio, mas eu nem dei por isso, e ela perguntava:
«- Mataste a tia, mas porquê?
– Quer dizer… Sei Lá, olha, ela não estava ali a fazer nada… Matei-a» . (risos)
Quando eu desliguei, estava tudo assim a olhar para mim… E, de repente, pensei: «daqui a nada eu tenho a polícia para me levar.» Tentei explicar aos senhores, mas não ficaram convencidos.
Muitas vezes, é dito aos escritores de literatura infantojuvenil que, para se inspirarem, devem ler livros infantis para tirar ideias. Não concorda com isso?
Eu concordo, até certo ponto. Eu concordo que quando se é escritor, deve ler-se muitos livros. Infantis, seja o que for. Deve-se ler muito, não para copiar, mas para ficarmos com palavras na cabeça que às vezes nos faltam. Quando vejo pessoas, miúdas, graúdas, seja o que for com um livro muito mau na mão eu nunca digo: «não leias esse livro.» Nunca! Porque, quer dizer, a gente nunca sabe como é que aquele livro, por muito mau que seja, vai tocar a pessoa.
Por isso é que eu também digo aos miúdos sempre para lerem muito para terem palavras, para poderem discutir, no emprego, seja onde for.
Mas não, não quero copiar ninguém isso, nem pensar. E depois, claro, temos que ler para os livros em que estamos a escrever alguma coisa com base numa coisa verdadeira. Tenho 2 livros de história: A Espada do Rei Afonso e Este Rei que eu escolhi. Evidentemente, que eu tive que ler tudo e mais alguma coisa, para além do que eu já sabia.
Hoje em dia para escrever utiliza-se muito a procura de sinónimos no dicionário para se fugir dos lugares-comuns. O que pensa sobre isso?
Eu acho que se deve fugir dos lugares-comuns, lógico. Mas não ir ao dicionário procurar palavras, quer dizer, a gente tem que ter palavras. Agora também ninguém vai ao dicionário… Quando a gente ainda usava dicionários, com os meus netos, quando eles eram pequeninos, íamos ao dicionário ver palavras complicadas e para aí durante uma semana a gente só usava aquela palavra (risos).
Mas eu gosto muito de brincar com as palavras e com os miúdos também tento sempre fazer isso. Por exemplo, explico-lhes que sempre que quando acabo de escrever leio sempre em voz alta. Os meus livros não são para ler em voz alta, evidentemente. Mas às vezes, se a gente não lê em voz alta escapam-nos coisas que não se escrevem.
No livro A Espada do Rei Afonso aparece um árabe. E ensinaram-nos que as palavras árabes começam quase todas por “al”. Então, o homem, o árabe, chega e começa a falar e naquelas primeiras frases, só usa palavras começadas por “al”: «Alguém sabe algorrém?»”Até que o Rei diz: «deixa a tua palermice e fala normalmente!»

Qual é a sensação de ter os seus livros traduzidos para várias línguas?
É evidente que a sensação é muito boa, mas a mim interessa-me é que os meninos de cá de Portugal leiam. Eu não escrevo para os meninos dos outros países, agora, se eles lêem gosto muito. Tenho muitos livros traduzidos. Há sobretudo um livro, que é o mais traduzido de todos, que é Os olhos de Ana Marta, que está traduzido em tudo o que é sítio.
Por exemplo, estou para perceber porque é que A Espada do Rei Afonso, que é sobre o D. Afonso Henriques, é tão popular na Rússia. Não consigo a sério, não consigo.
Costuma ir a escolas no estrangeiro? E em que idioma costumam ler os seus livros?
Costumo ir a escolas no estrangeiro, sobretudo na Alemanha.
São miúdos que aprendem português, ou então não. Também podem ser miúdos que leram livros traduzidos.
Qual o país mais estranho que já visitou para falar sobre os seus livros?
Mais estranho? Talvez por ser muito pequenino, o Luxemburgo. Tenho um livro traduzido em luxemburguês, isso é uma coisa, quase ninguém tem. No Luxemburgo falam essencialmente francês e alemão.
E português…
Sim, português, tem muitos portugueses. Mas também tem língua própria, que é uma língua estranhíssima. E uma das escolas onde eu fui teve essa gentileza: os miúdos tinham traduzido os meus livros de histórias tradicionais para luxemburguês.
Além da literatura infantojuvenil, tem também publicado alguma coisa para adultos. Qual o tipo de escrita que prefere?
Eu prefiro a escrita. Ponto final. Eu não escrevo para para crianças muito pequenas, como eu digo sempre, escrevo para crianças a partir do quinto ano. Mas também não escrevo especialmente para eles. Eu digo sempre que sou muito egoísta, porque eu escrevo para mim. Portanto, eu a escrever para mim não ponho palavras complicadas de propósito. Também não ponho simples de propósito. É para mim. De resto, quando eu dou o livro à editora, elas perguntam para que idade é. Eu digo: «vocês leiam, e logo vêem!»
Quando se senta não tem definido o público-alvo?
Não, nunca. Tenho que escrever um livro, sento-me à máquina, agora ao computador e escrevo assim a primeira coisa que me vem à cabeça.
Eu já deitei 3 livros fora
É muito crítica em relação ao seu trabalho?
Sim. Não está mal: não serve. Eu tenho que ter a certeza de que não sou capaz de fazer melhor. Se eu tenho assim uma pontinha de dúvida, deito, tudo fora e começo do principio, não me custa nada e pronto. E é uma coisa que os meus editores não gostam nada. Eu já deitei 3 livros fora, livros que já estavam completamente prontos para entregar. Eu leio, releio, emendo imenso, mas antes de entregar eu vou sempre ler outra vez.
Dizia-se que a bicicleta ia matar a leitura
Como é que se incentiva a leitura de livros numa era tão digital?
Isso é que é muito complicado. Quer dizer… Há desculpas em todas as alturas. Antigamente lia-se pouco e as pessoas diziam que os miúdos não liam e havia sempre qualquer coisa para matar a leitura.
Eu lembro-me de ter lido que quando apareceu bicicleta, dizia-se que a bicicleta ia matar a leitura. (risos). Há sempre qualquer coisa para a matar. Mas a leitura e os livros cá vão aguentando.
Apesar de tudo, vamos lá ver, nós não podemos pensar que todos os miúdos têm pais em casa que gostem de ler ou que tenham livros. Portanto, os intermediários, quem são? São os professores. E há professores que fazem um trabalho extraordinário e que levam realmente os miúdos a gostarem de ler e isso é fundamental.
Que conselhos pode dar aos pais para motivar as crianças a ler?
Tem que ser uma coisa ao princípio acompanhada, para os motivar. Já ter lido o livro ou ler na mesma altura. Agora há uma coisa terrível que eu estou sempre a dizer que é os livros serem obrigatórios na escola. Uma coisa obrigatória é sempre má. Se o futebol fosse obrigatório, ninguém jogava!
Algum dos seus livros é de leitura obrigatória na escola?
Obrigatório, infelizmente, tenho um. É um de teatro, o Leandro, Rei da Helíria. Os miúdos têm de ler qualquer coisa de teatro e há muito pouco teatro.
Então e que livro seu recomendava?
Bem, a gente, não conhece muito bem os miúdos. Se for um miúdo assim mais novo,que não goste muito de ler, recomendava o livro mais parvo que eu tenho que é que é Graças e Desgraças da corte De El-Rei Tadinho. É um livro de completa maluqueira. É o Reino das 100 Janelas, é o Rei Tadinho, porque era filho do Rei Tadão. É das coisas mais parvas e fartei-me de rir ao escrever aquilo. E depois há um monstro que está com o Rei e não sei quê. E o Rei para o monstro deixar o Reino prometeu dar-lhe a filha mais velha em casamento. Depois, o monstro diz: «sim, Senhor, venho cá buscá-la lá». Depois aí é o que é Rei se lembra que não tinha filha nenhuma (risos).
Não é uma peça de teatro, mas já tem sido representado de tantas maneiras. Eu já vi uma peça que parecia uma revista. Já vi o Tadinho em fantoche. Já vi o Tadinho de todas as maneiras e feitios…
Como é a recetividade dos alunos quando vai às escolas?
É sempre diferente. Quando a escola me convida, digo-lhes: «sim, senhora, eu vou, mas não quero que os meninos tenham lido um livro meu todo, mas que já tenham lido alguma coisa minha, que é para a gente poder conversar.»
E isso resulta bem, porque eles depois, se não leram o livro todo, vão ler o resto.
Lá vem um ou outro com uma pergunta sobre a história que leu, o texto que leu, o livro que leu… E temos as perguntas da nossa vidinha. Os meninos perguntam, então respondo! Não há nada na minha vida que eu não responda. Eu não tenho segredos para ninguém, nem para as crianças.
Ainda recebe postais e cartas de crianças e jovens?
Recebo e escrevo! Por minha causa, os correios nunca vão à falência porque eu compro tantos selos!
Ainda sou das poucas que escrevem cartas e postais e que recebe cartas e postais.
Atualmente, está a escrever algum livro?
Eu costumo dizer está quase pronto, só falta escrever… (risos) Mas é verdade, está tudo na cabeça depois é só escrever. Mas este não, está mesmo quase quase pronto.
Tem alguma rotina de escrita? Tem que escrever todos os dias?
Devia ter. Agora, há uma coisa que eu sei: eu só escrevo em casa. Eu tenho um computador portátil que nunca saiu da minha mesa. E só consigo escrever de manhã, de manhã cedo até para aí às quatro.
A partir daí, já não vem nada. Portanto, é a única coisa: começar muito cedo, no mesmo computador.
Não tem um caderno onde toma notas?
Tenho um caderno onde tomo muitas notas! Não quer dizer que as use. Coisas que eu ouço, até às vezes palavras ou coisas que eu vejo.

Por fim, quem é a Alice nos dias de hoje?
Eu acho que sou a Alice que sempre fui, acho que não me modifiquei nada. Sou maluca, como sempre fui (risos).
Uma vez, a minha editora pediu-me um livro sobre avós. E eu disse-lhe:
«-Opá outro livro sobre avós! O Daniel Sampaio está farto de escrever sobre avós.
– Não é isso, é sobre avós…
– Ah! Uma avó maluca como eu sou?
– É mesmo isso.»
Eu tenho um livro que se chama O Livro da Avó Alice que é as maluqueiras todas que eu fazia com os meus netos quando eles eram pequenos. E vende-se que eu sei lá! Acho que não mudei nada ao longo dos anos. Sou uma pessoa muito resistente. Sou uma pessoa que encara sempre a vida pelo melhor lado.
Saiba mais sobre a autora aqui.
Nota: fotos cedidas pela entrevistada